Olá Rosária é um gosto poder conhecê-la melhor e apresentá-la aos seguidores deste espaço, para começar:

Como que é que a Rosária Grácio se iniciou na escrita?
Desde pequenina interessava-me muito por ouvir histórias. Aliás, o meu pai tinha o costume de se juntar a mim e aos meus irmãos à noite, e antes de deitarmos, lia-nos um livro de histórias. Vivíamos em Angola, na altura, e não tínhamos televisão. Este momento de partilha familiar está fortemente gravado no meu coração e incentivou-me a gostar de ler livros, mal aprendi a ler. Como tinha boa memória, também gostava de contar às outras pessoas as histórias dos livros mesmo antes de saber ler, só seguindo as ilustrações do livro. A minha mãe conta que quando fui internada no hospital, os médicos e as enfermeiras gostavam muito de me ouvir a contar as histórias dos livros, e ainda nem sabia ler. Lembrava-me de como meu pai contava as histórias e a partir das ilustrações dos livros, recontava estas mesmas histórias. A partir do recontar, começava então a inventar novas histórias dentro das histórias que conhecia, e depois comecei a criar histórias a partir do que via à minha volta. Quando dei por mim, estava a escrever histórias em diários, dando novas histórias ao que se passava comigo, lendo e relendo os livros que tinha em casa. Sinto que esta infância desligada da televisão e apenas em ambiente familiar, e com este costume de se contar histórias em família, foi realmente uma bênção, pois aos poucos aproximei-me dos livros e quase que naturalmente comecei a escrever as minhas próprias histórias.

Qual o sentimento que a domina quando escreve?
A partilha de vida, um objetivo de vida, expressar a realidade com o uso de palavras e por meio de uma história fictícia que toca a minha realidade e a realidade de outras pessoas ou dos próprios animais como é o caso do meu livro “Bia por um Triz”. Neste livro “Bia por um Triz”, o que me motivou foi a desmistificação do que muitos pensam acerca dos gatos de rua e da sua adoção a partir de uma experiência real e pessoal com uma gata que adotei de nome Bia. Quando escrevo, deixo os personagens serem eles mesmos, e eu apenas escrevo o que eles vivem e sentem.

O que é que a escrita mudou em si, enquanto pessoa?
Cada livro é uma viagem que faço, desconstruindo e reconstruindo a realidade que vivi ou vivo, ou a realidade que outros viveram pois gosto de ouvir histórias reais, a terra e o ar da vida das pessoas, sem faz-de-conta. A realidade da vida é a melhor contadora de histórias que eu conheço, e por isso, escrever permite-me o meu autoconhecimento e crescimento como pessoa, refletindo sobre a realidade que me rodeia, a partir de minha perspetiva e da perspetiva dos outros. Aliás, isto de me colocar na perspetiva dos outros, já é um trabalho que faço desde a minha adolescência. Para avaliar melhor os problemas com que me deparo, costumo escrevê-los numa folha de papel, e depois tentar avaliá-los como se fossem de outra pessoa.  Geralmente somos melhores a dar conselhos aos outros, por isso, dessa maneira, conseguia melhor perceber o que se passava comigo, sem me guiar tanto pelas emoções que nunca são boas conselheiras. Por isso escrever ofereceu-me sempre esta oportunidade de aprofundar a realidade para além do visível e da aparência.

E enquanto escritora, o que tem aprendido?
Enquanto escritora, permite-me viajar pelas realidades diárias, tanto minhas como dos outros, refletindo sobre elas, colocando-me no coração dos personagens que descrevo, aprendendo com as suas histórias de vida, na maioria delas, baseada em factos reais. Escrever, para mim, é aprender a viver, apesar das limitações, pois se outras pessoas o conseguem, também conseguimos. Os personagens de cada história que conto, de certa forma, ensinam-me a viver.

Tem algum ritual de escrita?
Geralmente, ponho-me diante do computador e mergulho na realidade dos personagens que estou a escrever. Preciso de entrar inteiramente no mundo dos personagens, e por isso preciso abstrair-me de tudo à minha volta. Mas isso posso fazer em qualquer momento ou lugar, basta um papel, caneta ou lápis, desde que entre em um outro mundo, por assim dizer, e deixar-me conduzir como se eu estivesse na própria história que estou a escrever. O que apenas preciso é estar livre de outros pensamentos, e tenho de me estar inteiramente no que estou a escrever.

Como definiria esta arte na sua vida?
Escrever é uma forma de expressão que sinto desde os meus tempos de criança, pois desde essa altura, eu preferia estar a observar o que se passava à minha volta, ler vários livros e escrever histórias e poemas, do que a brincar com as outras crianças. Aliás, no intervalo entre as aulas da escola, na maioria das vezes estava no jardim da escola a inventar histórias com as flores, árvores e uns anãozinhos de barro que lá estavam a enfeitar o jardim da minha escola no Brasil onde fui morar com os meus pais a partir dos meus nove anos. Também lá havia um pequeno lago de peixes que me dava ainda mais inspiração, pois a água e o movimento dos peixes ainda mais contavam-me histórias, pois cada peixe tinha um nome e uma história. E assim passava horas no jardim, aparentemente sozinha, mas junto a tantos personagens com os quais convivia. E todos os dias era um capítulo de história que continuava no dia seguinte. Divertia-me imenso, ali sozinha, digo, aparentemente sozinha, pois os personagens das minhas histórias pareciam estar ali mesmo vivos à minha frente. Tinha saído de Angola por causa da guerra de 1975, onde vivi vários traumas, pelo que a readaptação a um novo país como o Brasil era um mundo totalmente diferente. Penso que esta minha mania de reinventar a realidade era uma maneira de ir me readaptando às novas realidades que vivia, não me prendendo tanto às perdas e às más lembranças do passado, criando, no entanto, à minha volta, um mundo onde me sentia mais confortável enquanto me readaptava à nova realidade cultural, como correu quando fui viver com a minha família no Brasil. Todas estas readaptações às novas realidades culturais são muito enriquecedoras quando as vivemos plenamente. O filme “Quarto com vista sobre a cidade” (A Room with a View) de James Ivory, conseguiu-me impactar, porque interroga esta questão das mudanças, do novo e das coisas simples da vida, e de como lidamos com as surpresas do dia a dia, especialmente em terras novas, quando as visitamos, e que vale a pena interrogarmos as nossas escolhas, e que nada nesta vida nos é dado, para sempre.

A escrita é para si, uma necessidade ou um passatempo?
Apesar de só agora poder me dedicar à escrita quase que inteiramente, nunca vi a escrita como um passatempo, mas antes como um lugar onde eu me recolhia de vez em quando, para falar abertamente do que via, vivia e sentia. Aliás, se não escrevo por muito tempo, fico como que vazia e incompleta. Por isso tenho vários cadernos escritos ao longo da minha vida em poemas, resumos de histórias e contos que espero desenvolver nos próximos tempos.

O seu primeiro livro publicado chama-se “Bia Por Um Triz”. Pode falar-nos um pouco dele?
“Bia por um Triz” surgiu-me numa altura difícil em que lutava com um cancro da tiroide e deparava-me com a progressão de uma deficiência visual. E neste contexto, deparei-me com a realidade dos gatos de rua, quando adotei uma gata de rua, a Bia. Por incrível que pareça, escrever esta história ofereceu-me uma alavanca de ressurreição, pois descentralizei-me de mim mesma e do que passava naquela altura para lutar por um ideal: desmitificar o que as pessoas pensam sobre gatos. Tudo foi se abrindo livremente em torno deste livro, como o blogue e a página do Facebook, e naturalmente abracei a história da Bia e tudo o que uma simples gata de rua me ensinou acerca das dificuldades da vida. Atualmente, revejo a história da Bia como a minha própria história de readaptação perante a deficiência visual. Assim como um gato de rua pode se readaptar a uma nova realidade, a um novo espaço e a novos donos, por vezes, mais limitadores de liberdade,  como, por exemplo, sair do infinito espaço de rua para o pequeno espaço de um apartamento, igualmente uma pessoa que perde a sua visão, pode se readaptar a esta limitação na sua vida. No entanto, apesar desta leitura que hoje faço da história da “Bia por um Triz”, o objetivo deste livro não foi essencialmente escrever sobre mim, mas sobre o que vive, de forma simples, um gato na rua. E que um gato também gosta de ser adotado e de ter um lar, e que o seu lugar não é na rua, especialmente nas grandes cidades, onde é realmente muito difícil a sua sobrevivência.

“Bia Por Um Triz” é um livro que visa consciencializar para uma situação cada vez mais proeminente, os gatos de rua e a adoção destes animais. Pode falar-nos um pouco da Bia? E do que esta bichana trouxe para a sua vida, e consequentemente, para a sua escrita?
Eu adotei a Bia porque eu tinha perdido a minha primeira gata Pantufa após uma doença silenciosa e cruel que lhe ceifou a vida em alguns meses. Mas eu tinha em casa, outra gata, de nome Lady que precisava de companhia. Aliás este luto de perder um animal de estimação, após tantos anos de convivência é uma dor muito grande. A minha gata Pantufa viveu comigo por quase 10 anos e perder também a Lady, com quem vivia já por nove anos era assustador. Eu e meu marido tomamos então a decisão de adotar uma gata já adulta para dar à Lady uma nova amiga e companheira. E foi-nos apresentada a Bia, uma gata já adulta, que foi encontrada na rua, já com uma das orelhas cordada na ponta, o que revela que já tinha sido castrada por alguma associação de animais. O que me impressionou é que a Bia e a Lady tornaram-se grandes amigas em menos de uma semana, como se já se conhecessem há muito tempo. Tudo isso me surpreendeu pois eu mesma tinha certos preconceitos com relação aos gatos que andam na rua. Aliás, julgava que os gatos que andam na rua, andam porque os gatos são assim, o que é apenas mais um mito. A Bia despertou-me para esta realidade dos gatos de rua, fazendo-me buscar conhecer o que se passa com um gato quando é abandonado, ouvindo as histórias de quem os adota, especialmente de quem lida com eles, no dia a dia, salvando-os da rua e buscando quem os adote. E ao mesmo tempo, ao dirigir as minhas atenções à história da Bia e dos gatos de rua, tirei o foco que punha na minha doença do cancro e da deficiência visual progressiva. Penso que estar atentos à realidade que nos rodeia, pois podemos aprender com esta realidade, se nos descentralizarmos de nós mesmos.


Como surgiram as ideias para construir este livro?
A história da “Bia por um triz”, baseou-se no que se me foi contado da verdadeira história da minha gata Bia e de outros gatos de rua, cujas as histórias fui ouvindo aqui e ali, colocando numa mesma história, de forma simples, o que realmente vive um gato na rua, quando é abandonado. Há quem diga que este livro conta uma história triste, mas infelizmente, é exatamente isso que é uma história de um gato na rua. A gata Bia conta a sua história de forma “nua e crua”, sem qualquer julgamento ou preconceito. O que move a Bia por um triz no livro é o amor pelos seus donos e a reconstrução do seu coração numa nova casa. Neste livro, as pessoas não vão encontrar uma história de gatos, estilo “Walt Disney” porque o livro “Bia por m Triz” não é uma fábula e nem um conto de fadas. Por isso, quem conta a sua história no livro é a Bia, sem floreados ou enfeites. E depois a história é bem curta, com palavras simples, acessíveis a crianças e adultos. Penso que este livro deve ser lido mais que uma vez para ser realmente sentido. O que desejo com este livro “Bia por um Triz” é que as pessoas vistam, por assim dizer, a pele de um gato abandonado na rua. Um dia, uma criança que leu o livro “Bia por um triz” disse-me: “Agora já sei como os gatos sentem quando são abandonados na rua. Não podemos abandoná-los!” Quando esta criança me disse isso, eu abracei-a e disse-lhe: - “Conseguiste perceber a história da Bia pois é exatamente isso que a Bia quis dizer, ao contar a sua história.”  Outro pormenor que tem este livro é que as suas 21 ilustrações foram feitas por mim e pelo meu marido, baseadas nas fotos da própria Bia. Este livro é um livro estreitamente personalizado com a Bia real que deu origem à história do livro. Para além disso, quando as pessoas adquirem o livro diretamente da autora, faço questão de colocar no livro também o autógrafo da Bia na forma de uma pata. Este carimbo foi feito a partir da própria pata da Bia. Em todos os autógrafos tento colocar também uma dedicatória totalmente personalizada. Todo o livro da Bia foi amplamente preparado durante vários meses antes da edição para que se tornasse único em si mesmo.

Para além do livro, gere um blogue, como vive o contato com o público?
No meu blogue (livrobiaporumtriz.blogspot.pt) partilho o que vivo com os meus gatos, de forma simples. Penso que só assim pode-se mudar mentalidades. Criei também uma página e grupo no Facebook (www.facebook.com/livroBiaporumTriz), onde diariamente vou partilhando este dia a dia com os meus gatos. Convido às pessoas que me seguem para partilharem também o que vivem com os seus gatos no dia a dia. Penso que estas histórias falam por si mesmas e desmitificam muitos preconceitos que ainda existem sobre os gatos, especialmente os de rua. O meu blogue não dá conselhos veterinários e nem me proponho a ensinar como se lida com gatos. O que partilho é o que vivo com os meus gatos. Cada gato é um gato, e por isso, convido aos que me seguem e tem gatos que também partilhem o que vivem. Só assim podemos perceber melhor os nossos amigos felinos e ajudarmos uns aos outros a cuidar deles no dia a dia. Neste momento tenho um grupo ligado à página do Facebook do livro “Bia por um Triz” que se chama - BIA Por UM TRIZ - É preciso contar a verdadeira história dos gatos - , onde comecei a criar um grupo onde partilha-se estas experiências, de forma simples e onde posso divulgar melhor os artigos do meu blogue, incentivando a partilha de ideias e de vida com os nossos companheiros felinos.

Gosta de ler? Considera importante ler para se escrever bem?
Como contei acima, toda a minha infância convivi com livros, a ouvir histórias e a recontá-las. Por isso, comprovo na minha própria vida que quanto mais se lê, melhor se escreve porque o vocabulário expande-se assim como o conhecimento, à medida que se deseja ler e aprender mais. Sempre gostei de ler. Na minha juventude, passava muitas horas na biblioteca da escola a ler vários livros, pois parece que um livro despertava-me aprender mais em outro livro, alguns deles científicos e outros apenas de histórias de suspense com os livros de Agatha Christie. Atualmente, mesmo com deficiência visual, não me inibo de comprar um livro para ler, pois como tenho baixa visão ainda consigo ler um livro. Aliás, isto é mais um dos mitos que as pessoas pensam da cegueira. A cegueira não ocorre de uma só vez. Antes da cegueira passa-se pelo patamar da baixa visão que muitas das vezes, já não pode ser corrigido com óculos ou cirurgia. A perda visual é lenta e gradual permitindo a algumas das pessoas com deficiência visual ainda usar um pouco da sua visão residual, que é a visão que lhe resta, nas suas tarefas da vida diária. Às vezes, consegue-se ler um livro, por exemplo, e não se consegue andar sozinho na rua sem a ajuda de uma bengala como é o meu caso. Tenho também o blogue (vercombengalaverde.blogspot.com), a página do Facebook (www.facebook.com/Vercombengalaverde), e canal do youtube “Ver com bengala verde” dedicado a este assunto que convido a todos a ir visitar, porque ainda existem muitos preconceitos com relação a usar-se uma bengala, sem ser-se totalmente cego. Por isso, em 1996, a professora Perla Mayo criou a bengala verde que quer dizer “ver de novo” ou “ver de outra maneira” para identificar as pessoas com baixa visão e assim poderem usar uma bengala sem serem confundidas com as pessoas cegas totais que usam uma bengala branca. Atualmente a bengala verde já está instaurada em vários países no mundo, incluindo Portugal, ajudando muito nesta desmistificação da baixa visão, para não ser confundida com a cegueira total.

Além da escrita, que outras paixões, nutre que a completam enquanto pessoa?
Para além da arte da escrita, também sempre me dediquei à arte da pintura e desenho artístico. Também aqui nesta arte, a escrita tem um papel fundamental. A maioria das minhas obras únicas e exclusivas têm uma alma igualmente única que se transcreve num breve poema. Por isso eu digo que a minha arte tem alma. No meu canal de Youtube (www.youtube.com/c/RosáriaGrácio), tenho algumas listas de reprodução dedicadas a juntar a minha arte aos seus respetivos poemas, como que a convidar às pessoas que veem os meus quadros, igualmente a entrarem na sua realidade única. Para mim, uma obra de arte não é fruto do acaso, mas uma forma de expressão de uma realidade concreta. Por isso chamo aos meus quadros, “filhos”, porque nascem das minhas entranhas, do íntimo do meu ser, e cada um deles tem a sua própria personalidade e vida própria. Assim sendo, a cada um deles, dedico um poema onde conto um pouco da sua história para melhor ser entendido na sua complexidade pictórica. Neste momento tenho vários blogues dedicados à arte (gracciocaetano.blogspot.pt), (sintaepinte.blogspot.com),(pinturadosagradocatolico.blogspot.com), e um grupo no facebook (arte com alma - sinta e pinte com gráccio caetano) para aos poucos, partilhar esta ideia de Arte com Alma, assim como chamo à Arte Gráccio Caetano (www.gracciocaetano.com). Gráccio Caetano é um atelier que junta três artistas, do qual faço parte há vários anos. Neste momento, tenho um novo canal do Youtube completamente dedicado à Arte Gráccio Caetano, onde partilhamos um pouco disto de sentir a arte, como se ela fosse assim um ser vivo que precisa ser sentido para realmente ser percebido na sua essência.

Quais os temas que gosta de abordar quando escreve?
Os temas que gosto são os temas da vida. Antes de mais, gosto de histórias de superação. A esperança, o amor, a luta perante os obstáculos da vida, a persistência perante os ventos contrários e a reconstrução de nossas vidas após os desastres do quotidiano. Como já disse, eu falo do que vivi, vivo e vejo outros viverem. Eu nasci em Angola, e vivi lá um pouco da guerra que tanto ceifa, seja porque motivo for. Uma guerra pode até ter motivos justos, mas sempre será injusta, especialmente porque são sempre os mais frágeis que são apanhados nos seus entremeios. Eu tinha apenas 9 anos quando tive de fugir do país onde nasci, e com essa idade vi pessoas mortas e ouvia tiros de um lado para o outro. Perguntava-me, na minha inocência, o porquê das lutas, das guerras… Eu apenas queria viver lá com os meus pais e os meus irmãos e não percebia muito bem porque tinha de deixar para trás os meus brinquedos, e fugir, se não tinha feito mal algum a ninguém,… Bem, penso que a partir dessa realidade catastrófica de perda, é que talvez me fez dar mais tempo a refletir sobre estas interrogações humanas, na maioria das vezes, sem respostas simples… Se um dia abordar este assunto da guerra, sinceramente iriei abordá-lo assim, sem máscaras ou tentando dar motivos para justificar isto ou aquilo. O mal não se justifica, vence-se e supera-se com o bem, pois precisamos seguir em frente. Graças à guerra de Angola, eu e minha família fomos para o Brasil, e lá, aprendi tanta coisa, pois cada país com a sua cultura, história e realidade ajuda-nos a perceber melhor os er humano. Do mal pode-se fazer bem, e é isso que escrevo. Precisamos superar as perdas porque senão ficamos estagnados no passado. O ser humano só supera, quando se liberta do mal que viveu, desprendendo-se dele, não se deixando escravizar por ele. Esta liberdade deve alargar-se à sua opção de reconstruir, pois como dizem os mais antigos: “Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe.” A vida é feita de passos, de altos e baixos, e todos os dias são uma nova oportunidade. O passado deve ser apenas uma experiência, que boa ou má, nunca nos deve estagnar. Por isso, a vida é feita de inúmeros finais felizes, aqui e ali, e contar isso, ressuscita-nos, pois não nos podemos deixar escravizar pelas amarras da falta de esperança. Aqui relembro a história de Nelson Mandela que mesmo preso, durante vários anos pelo regime de segregação racial que havia no seu país, estudou e desenvolvia, ali mesmo na prisão, o seu conhecimento, conseguindo tirar o curso de Direito, tornando-se advogado quando foi libertado para defender os direitos humanos no seu país. Durante o tempo em que estava preso, muitos dos que o ali também estavam, diziam-lhe que não merecia a pena, andar ali a estudar a perder tempo porque a sociedade à sua volta nunca iria mudar. Porém, Mandela estava preso fisicamente, mas o seu pensamento estava sempre livre e voava sempre para além da sua realidade. São exemplos desses que precisam ser contados, e há um pouco dessas histórias, por vezes, ali perto de nós. E são estas histórias que gosto de contar nos meus livros.

Se só pudesse ler apenas um único livro para o resto da sua vida, qual seria o privilegiado?
Se tivesse de escolher um único livro, e tenho muitos livros na minha biblioteca pessoal, teria de escolher aquele que me fez recomeçar a partir de mim mesma, sem medos. Quando eu era criança, tinha imenso medo dos relâmpagos, e esse medo poderia chamar-lhe pavor, pois com receio dos trovões, escondia-me em cobertores em pleno verão. Um dia, prometi a Deus que se me livrasse desse pavor aos trovões que iria começar a ler a Bíblia do início ao fim, e como a fé não precisa de provas para se ter, de imediato comecei a ler a Bíblia, e ainda hoje continuo a lê-la, um pouco de cada vez. Quando dei por mim, não tinha qualquer receio de trovões, relâmpagos ou trovoadas, e até hoje, ando na rua e sinto-me tranquila diante desta força da natureza, que sei, ser responsável por várias mortes no mundo. Percebi que tudo o que nos rodeia, é imprevisível e acaba um dia, e não podemos prever, se dali sairá, algum dia, algo que nos poderá magoar ou ferir. Porém, este medo do que pode vir, pode ser um entrave para realizar os nossos planos de vida. Por isso, apesar da Bíblia ser um livro essencialmente espiritual para os cristãos, por meio das histórias bíblicas, histórias vividas e recontadas por um povo que existe ainda nos dias de hoje, também aprendi muito do universo humano e de como Deus, apesar das minhas limitações humanas, vai me conduzindo numa contínua aprendizagem acerca do que é bom e do que é mau, a partir do que outros viveram. Como se diz e bem, “um povo que não conhece a sua história, acaba por repeti-la” e eu digo, que se não soubermos ler bem a nossa história, acabamos também por repeti-la especialmente nos erros. É preciso embrenharmos no universo de nós mesmos antes de tentarmos descodificarmos os outros. A Bíblia tem me ajudado muito nesse processo de conhecimento espiritual de mim mesma, e se tivesse de escolher um livro apenas, para continuar a me acompanhar, seria este livro que na verdade abarca uma biblioteca de vários livros, e daí o nome Bíblia, que levaria comigo.

Pensa em publicar novamente depois deste seu primeiro livro?
Sim, claro. Mas sou um pouco perfeccionista naquilo que faço, e só quando sinto que tal e tal história está realmente “madura”, por assim dizer, é que penso em publicá-la. Só há cerca de uns três anos é que comecei a dedicar-me inteiramente à escrita, e neste momento tenho três projetos em vista totalmente autónomos. Aliás, a própria história do livro “Bia por um Triz” não acaba ali, pois pressente algo depois. É um bocado como a vida real, em que mesmo os capítulos finais, na verdade são o início de novas histórias. Uma vez li numa estação de autocarros a seguinte frase: “Um ponto de chegada é também um ponto de partida.” Por isso, quando pensamos que finalizamos alguma coisa, na verdade, estamos a recomeçar novas coisas, novos caminhos, novas propostas, novos objetivos. A vida é contínuos passos, e um de cada vez.

Qual seria o género literário no qual gostaria de se aventurar?
A poesia oferece-me um caminho curto, os contos oferecem-me um caminho intermédio e os romances oferecem um caminho mais longo. No entanto, se são os personagens das minhas histórias que têm vida própria então, deixo-me levar por eles, sem pressa. Os personagens, por vezes, escondem muito do que são, e só aos poucos eles se revelam. É preciso uma interação no dia a dia com eles, para perceber o que eles realmente desejam de mim como escritora.

Imagine a sua vida sem a escrita, como seria?
Sem a escrita, ainda estaria numa espécie de “infância humana”, a desejar tudo pronto e feito à minha medida, sem refletir sobre o que se passa à minha volta. Estaria presa a muitas coisas e ao mesmo tempo vazia de tudo. Seria uma eterna insatisfeita pois o material não nos dá tudo. Pela escrita enveredei por caminhos abstratos, espirituais e não palpáveis. A escrita é como o ar que nos rodeia, que não se consegue agarrar com as mãos ou colocá-lo nos nossos bolsos para depois usá-lo quando der mais jeito. Só conseguimos sentir a presença do ar, percebê-lo frio ou quente, tempestuoso ou calmo, límpido ou esfumado, mas nunca conseguimos dizer que este ar de hoje será apenas meu e de mais ninguém. Depois de escrever um livro é como pintar um quadro ou ter um filho, apesar de sair de nós, não será mais nosso, mas irá viver noutras cabeças como o meu poema “Esta minha poesia”, cujo o vídeo já partilhei no meu canal do Youtube que convido a todos a verem (www.youtube.com/watch?v=rjqFtnPEC8I&t=3s). Aqui partilho alguns dos versos:

“A minha poesia vive aqui e ali
naufraga neste mar do infinito querer
Dança e finge ser o que vivi
Não a queiras decifrar, apenas lê!

Então ela voará para a tua boca
Saltará da tua cabeça para outra
Será nova e tua por instantes 
Porém será livre e estará solta!

Não a prendas, deixa-a!”

E sem a Bia?
Sem a Bia, talvez ainda não tinha escrito o meu primeiro livro, pois se escrevi este livro “Bia por um Triz” não foi motivado por mim mesma, mas pelo que vivem tantas “Bias”, como gatos de rua abandonados nas nossas ruas.  A partir do que me ensinou um gato de rua, na sua simplicidade, aprendi a sair de mim mesmo e dos meus problemas e abracei vários projetos que espero ir desenvolvendo, pois nada do que nos acontece, é por acaso, se nos dispusermos a aprender e readaptar a cada nova etapa da vida. Sempre vale a pena lutar e cuidar do que me rodeia. A Bia ajudou-me a perceber, que ainda tenho muitas coisas a fazer, que há pessoas, animais como os meus gatos, e até as minhas plantas que tenho na minha casa, que preciso cuidar e amar, e por isso, não posso me deter nas minhas limitações físicas. Convido a todos a ler o meu e-book que fez parte do meu blogue “ver com bengala Verde” intitulado: “Os meus gatos e os quatro pilares que sustentam a minha readaptação como deficiente visual”  disponível no seguinte link:
docs.google.com/document/d/1X6SVXUHGjUlNG7NxM29EAN0FNzF5ouAilfBK-i7PmAQ/

Apenas numa palavra, descreva-se: Fé
“Com a fé, vejo mistérios; sem a fé, vejo absurdos." (Pascal)