Não sei como
começar uma carta, um texto, um bilhete ou o que seja para ti.
Sinto saudades
tuas, todos os dias.
E escrever sobre
ti ou para ti, nunca será fácil.
Não costumo
emocionar-me durante a escrita - é o que amo e tu sabes que só o faço quando me vem
diretamente da alma, pelo contrário, nem me esforço - mas quando o teu nome ou
um pensamento sobre ti surge em meio às palavras, não há nada que me valha.
Nascem rios dos
meus olhos castanhos (esverdeados), que sei que herdei de ti, e nem imaginas o orgulho
que sinto por dizê-lo em voz alta.
Ouves-me aqui?
Nesta frase tão
simples e tão cheia de tudo o que és para mim, tenho orgulho de ter herdado partes de ti em mim.
Escrever sobre ti, avô Francisco, é aceitar que já cá não estás e que a vida seguiu o seu percurso,
tal como era suposto.
Se outrora
escrevia contos de fada em que eras o herói e salvavas princesas, hoje só me
resta esta carta para te falar das saudades que sinto. Não é porque já não mereças o
estatuto de herói, mas tu sabes… já não escrevo histórias de princesas e bruxas
más, já não preciso que as resgates. Preciso é de ter-te em mim e, ainda assim, lembrar-te o
menos que me for possível.
Porque dói. Todos os malditos dias. Dói.
E mesmo
levando-te comigo onde quer que vá, tento pensar-te pouco, ou corro o risco de
ser engolida pela saudade que deixaste.
Eras tão lindo!
Conheci-te
sempre lindo. Olhos da cor do mar. Cabelos brancos e bigode sempre aparado. De estatura
alta e postura altiva.
Procurei-te em
tantos rostos e nunca te encontrei, avô…
Não há ninguém
que se compare a ti.
Tu ao lado do
pai. Bengala na mão. Sorrisos tão perfeitos congelados em fotografias que ainda
guardo debaixo da almofada. Amavas o pai como se fosse teu filho. E eu amava
ver o amor que davas e davas sem pedir nada em troca.
Jogavas dominó
com os teus amigos sem dentes e carecas e eu podia jurar que era das cenas mais
porreiras de sempre. A amizade. A amizade que tinhas pelos teus, mesmo que
fosses o gajo mais batoteiro que o teu grupo conheceu. Aprendi alguns truques
contigo e uso-te como desculpa «o avô também fazia isto», no fim, ninguém se
aborrece.
Com o teu humor
e as tuas anedotas, tantas e tantas vezes repetidas.
Esperei que
partisses para decorar a lengalenga que por anos a fio contavas durante o
almoço entre uma garfada e outra. Mas decorei e, um dia, os bisnetos que nunca
vais conhecer, irão decorá-la também, e saberão que mesmo que já cá não
estejas, serás sempre a melhor pessoa do mundo.
Hei-de levar as
tuas palavras através das gerações, porque se o mundo te perdeu, que aqueles
que carregam o teu sangue nas veias, nunca, mas nunca, te percam também.
Sentavas-te na
cama ao lado da avó, a tua mão tocava a dela e eu invejei-vos vezes sem conta.
Algures num
vídeo do aniversário da avó, o teu sorriso encontra o dela, os teus olhos
pousam nas suas rugas, enquanto eu vos dedico um poema que escrevi. Eu não
tinha mais do que dez anos. A imagem mais linda do mundo.
Tu e ela. O amor
que construíste. Os filhos que criaste. Os netos. E eu que fui a última, a
neta casula. Que via os desenhos animados sentada ao teu lado e me regalava com
os doces de chocolate que me davas todas as tardes, e com as moedas de cinco
cêntimos que me oferecias como se fossem uma fortuna... sempre te chamei
forreta. Quão ignorante fui…
Tu, com os teus
braços esguios abarcavas todos os que amavas e sempre nos amaste por igual,
nunca nos distinguiste uns dos outros, sempre fizeste com que nos sentíssemos
especiais e amados, e dinheiro algum vale tanto quanto os valores que nos
incutiste, os exemplos que nos passaste e o amor que nos deste, que se
entranhou de tal forma nas nossas almas, que nada te arranca de nós.
Ser tua neta é o
meu maior orgulho e tu serás sempre o meu ídolo.
Contavas a
história de amor que gerou tão bela família, e eu só desejava um amor igual.
Mas depois a avó morreu e parte de ti morreu com ela.
A avó morreu, e se o destino existe, acreditei nele, quando a perdeste. Ela morreu
poucos dias depois do teu aniversário, e tu foste encontrá-la, poucos dias
depois do primeiro aniversário que comemoraríamos sem ela. Danado! Até nisso,
nos enganaste. Tenho a certeza que só querias estar perto dela.
Só que no fim,
não resta nada, nem amor, sonhos, dor ou memórias.
Somente culpa.
Disseste-me na véspera de seguir para Leiria, de férias, não vás, fica com o
avô, e eu revirei os olhos e beijei-te a face.
Se soubesse que
aquele seria o último beijo que te dava, teria pegado uma manta e sentado ao
teu lado. Abraçava-te a noite toda e não te deixava partir.
Morreste em paz,
é o que dizem. Eu também morri nesse dia, mas a paz nunca a encontrei.
Nunca saberás o
quanto chorei e me arranhei por ti. Nunca saberás o quanto te amei e o quanto
desejava poder agradecer-te por teres sido tão exemplar.
Às vezes, dou por
mim a pensar no quão má fui por não ter estado presente, mas eu era uma criança
e tento convencer-me disso todos os dias. Porque por mais que evite pensar em
ti, a qualquer momento, nas cenas mais simples e insignificantes, lá está a tua
imagem.
Ó avô se
soubesses as saudades que carrego…
Do teu cheiro.
Da tua voz. Do teu sorriso.
Hoje guardo-te
em fotografias, em cartas que escrevias, em um amontoado de papéis que não servem
para nada, mas que eu sei que em algum momento foram tocados por ti... é a minha
forma de te sentir por perto.
Tento fazer jus
à promessa que te fiz, o teu corpo já era só lembranças e ao nosso redor só se distinguiam
lágrimas e dor.
Nunca leste o
meu livro, nunca o viste em livrarias, mas está lá. É teu. Dediquei-to.
Foi no pátio da
tua casa que escrevi a minha primeira história, tão certa de que queria ser escritora.
Nunca vais saber
o quanto cresci. Nunca vais saber que me apaixonei pelo Marcelo. Nunca vais ver-me
casar ou ter filhos. E eu queria tanto que cá estivesses, porque sei que irias
amar os meus, como se fossem teus também.
Nunca vais
conhecer a Sofia ou o Gustavo. Mas sei que os irias amar tanto como
nos amaste a todos.
Se há certeza
que tenho é que o amor que nos deixaste é suficiente para alimentarmos os próximos
que se seguirem a nós.
Escrevo-te a
chorar. Porque nos outros dias todos, evito recordar-te. Sei que estás em mim,
e isso basta-me. Mas pensar em ti e no quanto gostaria de ter-te, é doloroso demais.
Dava metade de
mim pela tua vida, e isso nunca mudará, porque vives em mim, muito mais do que
grande parte daqueles que me rodeiam.
E viverás em
todos os que se seguirem a mim.
Um dia,
encontro-te, com esses olhos esbugalhados a sorrirem e a transbordarem amor,
cigarro na boca, fumo a turvar-te as feições, e conto-te sobre a vida por aqui.
Jogamos uma partida de dominó e eu mostro-te que também sei fazer trafulhices,
prometes?
Amo-te.
Eternamente.
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