Desde muito pequena, que sempre senti tudo diferente dos outros, nunca senti menos, nem assim-assim... Sempre senti exageradamente, o coração a percorrer estradas longas e solitárias a mil por hora, os pés descalços sobre os meus sonhos partidos em pedaços, rios dentro de mim que transbordavam e formavam furacões nas almofadas onde o meu rosto repousava. A minha vida era um eterno inverno, e... tu foste o único verão que eu conheci. E só por te conhecer, viver começou a fazer sentido. Eu conseguia ter visões de mim mesma, num futuro feito à minha medida, tecido pelas minhas próprias mãos, em que tu estavas presente; as tuas mãos nas minhas; os teus olhos nos meus. Podíamos rir, chorar, ou ler poemas até ao amanhecer ao som de David Bowie.
Contanto que me desses a mão, eu sabia que poderia aguentar qualquer coisa, até pragas e dilúvios. Eras a minha arca de Noé.
Então, comecei a envelhecer. Mais rápido do que esperava. A estrada da vida, cheia de lombas, e eu cheia de veneno das flores silvestres que fui colhendo - ou talvez fosse o veneno do meu sentir, assim tão descomunal. Continuei a morar num corpo jovem e esguio, com pele macia com cheiro a malmequeres do campo, mas fiquei velha. Por dentro.
Cansada. Massacrada. Pelos meus pensamentos. Pelos meus sentimentos. Escrava das minhas emoções. Que sempre cultivei desajeitadamente.
Morri muito antes de me matar. Mas ninguém sabia. E hoje, como quem se despede da vida, despeço-me de mim. Abandono o meu cargo. Demito-me do peso que é ser eu mesma todos os dias.
O meu corpo ainda é novo, mas a minha alma está cansada para continuar. A vida - que sempre me seduziu tanto - comeu-me até aos ossos. Sou apenas poeira do que nunca cheguei a ser. Um amontoado de memórias. As memórias felizes foram as que criei contigo, essas mesmas que me faziam ter fé no amanhã, ter esperança em dias melhores, na brisa leve da manhã, e na beleza de ler Bukowski pela madrugada fora. Mas hoje, eu não estou mais aqui. Está o meu corpo, sentes-me? Ainda quente? Ainda trémulo? Mas já a definhar. Morri antes de me matar. Lembra-te disso quando a noite te lembrar que parti. Continuei a caminhar pela estrada longa, da mesma forma que a comecei, sozinha. Porque a morte é isso, partir-se só - e deixar partido quem ficou.
15 de Março de 2018, Letícia Brito
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